Cresci na periferia, mas um privilégio me catapultou para fora da pobreza

Avaliando minha trajetória pessoal e profissional, percebo como o suporte emocional familiar e a autoconfiança foram cruciais para eu iniciar uma startup sem ter dinheiro e encarar mercados dos quais eu pouco sabia; atitudes impensáveis para um moleque da periferia.

Marco Gomes, com pouco mais de 1 ano, dá tchau para alguém. Ele está sentado num elefante de fibra, num carrossel de parque de diversões.
“Tchau, gente!”

Quem me acompanha nas redes sociais frequentemente vê as histórias que conto sobre como foi crescer pobre e na periferia. Em diferentes fases da minha infância e adolescência eu: morei em barraco de pau com esgoto correndo no beco atrás de casa; colecionei cápsulas de munição encontradas na vizinhança; perdi conhecidos e familiares vitimados pela guerra às drogas; apanhei da polícia várias vezes em abordagens desnecessariamente violentas; deixei de almoçar para economizar dinheiro; entre outros relatos comuns à tantas pessoas vindas das camadas mais pobres da sociedade.

Marco Gomes, bebê, com os olhos arregalados, coloca a mão dentro da boca do pai, que brinca de morder seus dedos. Wilian Gomes tem cabelo black power curto, e várias marcas de espinhas no rosto.
Eu e meu pai, 1986.

Porém, acredito que um privilégio foi crucial para que eu saísse da pobreza: afeto familiar, meu alicerce emocional. Falo do apoio e suporte vindos dos meus pais, tios, avós, primos e também de amigos.

A definição que uso neste artigo para privilégio é: uma situação que me beneficia sem ter sido eu o responsável por criá-la.*

Cresci no Gama, DF, e a vida na periferia nos anos 1990 e 2000 teve períodos de ascensão e queda na pirâmide social e econômica. Em alguns momentos, era possível viajar 44 KM para ir ao McDonald’s e cinema nos shopping-centers do Plano Piloto, em outros era preciso colher couve no quintal para dar alguma sustância ao sopão. Em todo este período, no entanto, eu sempre me senti amado, incentivado e confiante. E isso foi essencial, além de não custar um centavo.

“É preciso uma aldeia inteira para criar uma criança”

Em vários momentos de minha infância e pré-adolescência, meus pais ficaram um pouco mais ausentes do convívio familiar, por precisarem trabalhar ainda mais horas por semana. Mesmo nestes momentos, tive uma base familiar de tios, tias, avós e avôs que nunca me abandonaram. São 11 tios e tias, mais cônjuges, e este amplo grupo familiar sempre compartilhou responsabilidades, de um jeito que levei anos para compreender o valor. Não foram poucas as vezes que apoiamos uns aos outros, inclusive para nos alimentar, com meu núcleo familiar próximo participando não só da minha criação, como também de meus primos e primas mais novos, e até hoje é assim.

“Esses boy conhece Marx, nóiz conhece a fome”

Emicida, Levanta e Anda

Mesmo nos momentos mais chatos da adolescência, eu nunca me senti abandonado, não lembro de ter algum dia pensado que “ninguém gosta de mim”. Na periferia é comum testemunharmos pessoas abandonadas – mesmo que não-formalmente –, pelos pais, e excluídas pela família estendida. Expulsos, mesmo que nas entrelinhas, da casa de tias e tios, justamente nos momentos em que mais precisam de apoio. Eu nunca passei por isso.

Aos 18 anos, fazendo estágio de dia e curso universitário à noite, sem grana, fiquei algum tempo sem poder almoçar, apenas jantando por R$1 no restaurante da universidade pública. Na época, o orgulho não me deixava pedir ajuda – aquela mentalidade durona de “deixa que eu resolvo sozinho”, mas sabemos que muitas vezes não é possível resolver sozinho –, por isso não contei a situação para ninguém durante algum tempo. Fiquei visivelmente fraco, sem a performance mental usual – defensores da “meritocracia” dirão que “quem se esforça, consegue”, sugiro que tal defensor tente “conseguir” sem ter a quantidade mínima de nutrientes no cérebro. Minha mãe notou algo estranho, perguntou o que estava acontecendo e eu contei que não almoçava. No dia seguinte, ela começou a fazer as marmitas que me sustentaram até eu trocar de emprego e conseguir pagar o almoço nos restaurantes do plano piloto. Eu tive a sorte de ter uma mãe sensível, atenta e capaz de solucionar problemas com o que estava à disposição naquele momento.

Dos 8 aos 11 anos, meus pais trabalhavam muito e eu ficava a maior parte do tempo com meus avós e tios, inclusive dormindo na casa de parentes por dias a fio. Foi nesta época que tive minha iniciação no mundo da computação. Meus tios eram muambeiros: viajavam para o Paraguai e compravam peças de computador, montavam o PC em casa e vendiam no DF através de anúncios nos jornais. Eu ficava em volta deles torrando-lhes a paciência, fazendo perguntas e pedindo para jogar o jogo de tiro (Doom 2 ou Duke Nukem 3D). Pergunta vai, pergunta vem, eles me ensinaram a montar computadores e instalar os softwares, o que também me iniciou no aprendizado do inglês, brincando. Em outras inúmeras situações foram minhas tias e tios que me levaram ao cinema, parques, sorvete, usando comigo seus suados salários-mínimos. Não foram poucas as vezes que meus pais, tios e tias se reuniram para fazer as compras de supermercado de um dos irmãos em dificuldade. Minha família formou um ecossistema de apoio interno, mas nem toda família é assim, há inclusive casos de destruição mútua.

Wilian Gomes aos 21 anos e Marco Gomes, bebê, no colo.

Com 5 anos de idade eu morava no Gama, DF, e estudava no Plano Piloto (capital), são 44 KM de distância, que na época eu percorria de ônibus, em uma viagem que durava uma hora. Eu saía da escola meio dia, com fome, e meu pai, que trabalhava próximo à escola, me pegava na porta, me levava para almoçar, e depois me colocava em um ônibus de volta para casa. Não foram poucas as vezes que ele, sem dinheiro, ficou sem comer para que eu pudesse me alimentar. Há quem não tem um pai tão disposto a se sacrificar por um pirralho questionador. No Brasil, mais de 11 milhões de lares com filhos não têm pai presente. Eu tive.

Marco Gomes, criança de colo, sentado no colo da avó. Marco brinca com uma embalagem redonda de remendo de pneu de bicicleta.

Eu com certeza comi mais refeições pagas por meus avôs e preparadas por minhas avós do que por quaisquer outras pessoas. Eu comi e dormi literalmente por vários anos na casa dos meus ancestrais. Encontrando ali abrigo e alicerce.

Estes casos podem parecer apenas de apoio material, porque pobre passa mesmo quase 24h por dia resolvendo treta relacionada com dinheiro (quem é ou foi, sabe), mas hoje eu percebo que há muito mais nas atitudes acima. Em cada ação dessa há um “eu acredito em você”, um “estamos juntos”, um “confie que isso aqui eu resolvo, vai lá resolver aquilo ali”.

Eu nunca ouvi da minha família que eu seria estúpido, fracassado ou que eu não poderia fazer algo. Há nos Martins-Teixeira e nos Sabino-Gomes uma autoconfiança que pode até ser lida como arrogância. Entre a arrogância dos Martins-Teixeira e dos Sabino-Gomes, e a apatia que vi em muitos dos meus vizinhos, eu fico com a nossa arrogância, todas as vezes.

Mesmo sem treinamento formal em pedagogia infantil, minha família criou um alicerce, que impactou positivamente minha saúde mental para o resto da vida. E isso me levou de um barraco de pau com 4 cômodos e 13 pessoas no Gama, DF, para um prêmio como o melhor profissional de tecnologias de marketing do mundo, apresentado pela Time e CNN em Nova York, para um discurso sobre Economia Criativa na sede da ONU, para um apartamento em Manhattan com vista cinematográfica para o Empire State Building.

Empire State é visto da janela do apartamento em Manhattan. O edifício tem uma antena pontuda em seu topo e está iluminado de branco. Ao lado da janela há uma árvore de natal.
Vista da janela de casa, em Manhattan, Nova York.

Muitas vezes, tudo que uma pessoa da periferia precisa sentir é acolhimento, pertencimento e autoconfiança, ter uma plataforma segura para se apoiar antes de alcançar aquilo que a sociedade, todos os dias, diz que não é para nós. É sim, por nós, para nós e para os nossos.

* Há outras definições de privilégio, igualmente válidas, mas não é este o ponto.

Sobre o autor

Marco Gomes trabalha com Estratégia de Implantação de Data Science em Nova York, EUA. Profissional reconhecido em 2014 pela revista Forbes como um dos 30 jovens com menos 30 anos mais promissores do país; fundador da boo-box, apontada como uma das empresas de publicidade mais inovadoras do mundo pelas revistas Fast Company e Forbes, vendida em 2015 para a FTPI Digital; e co-fundador do Heartbit / Mova Mais, app de saúde listado pela revista Consumidor Moderno como uma das 100 empresas mais inovadoras do Brasil. Marco fez educação executiva em Gerenciamento de Marketing Estratégico na Universidade de Stanford, Califórnia.