“Calma, filho, você é inteligente. Um dia vai poder comprar tudo o que quiser” #diadasmaes

_ Filho, por que você está triste?
_ Nada não, mãe.
_ Eu te conheço, fala?
_ Um cara na UnB (Universidade de Brasília), fez 18 anos agora em março, mora lá perto, ganhou um Celta. Por que ele pode ter um carro zero para dirigir feito um idiota – canta pneu de 1ª e de 2ª, faz curva rápido demais, dirige acima da velocidade –, enquanto eu fico quatro horas por dia em um ônibus, chego em casa meia-noite, saio às 6 da manhã e tenho que dormir em um assento de sofá?!
_ Calma, filho, você é inteligente, um dia vai poder comprar tudo o que quiser.

Marisol Gomes aponta o Empire State Building, icônico edifício em Nova York.
Marisol Gomes em Nova York, 2017

Minha mãe disse isso e fez uma oração por mim, como ela faz todas as noites até hoje, 15 anos depois. Nesta curta conversa, em uma madrugada, ela me ensinou duas lições importantes, que eu só consegui sintetizar muito tempo depois, em Nova York, onde vivo atualmente, sem carro por opção e dormindo em um dos melhores colchões do mundo.

  1. A importância do suporte emocional vindo da família, para nos ajudar a atravessar as mazelas da vida e conseguir sair de situações difíceis, relacionadas ou não com dinheiro.
  2. A pessoa com maior controle sobre suas próprias vontades é você mesmo. Se não quiser o Celta ou qualquer outro bem de consumo, o sistema perde uma importante alavanca de controle sobre você.

Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor
Pelo rádio, jornal, revista e outdoor
Te oferece dinheiro, conversa com calma
Contamina seu caráter, rouba sua alma

– Capítulo 4, Versículo 3, Racionais MCs

“Calma, filho, você é inteligente”

O privilégio do suporte emocional

Avaliando minha trajetória pessoal e profissional, percebo como o suporte emocional familiar e a autoconfiança foram cruciais para eu iniciar uma startup sem ter dinheiro e encarar mercados dos quais eu pouco sabia; atitudes impensáveis para um moleque pobre.

Cresci no Gama, no Distrito Federal, e a vida na periferia nos anos 1990 e 2000 teve períodos de ascensão e queda na pirâmide social e econômica. Em alguns momentos era possível viajar 44 quilômetros para ir ao McDonald’s e cinema nos shopping centers do Plano Piloto, em outros era preciso colher couve no quintal para dar alguma sustância ao sopão. Em todo este período, no entanto, eu sempre me senti amado, incentivado e confiante. E isso foi essencial, além de não custar um centavo.

Marisol Gomes desfaz tranças no cabelo de Marco Gomes
Marco Gomes e sua mãe, Marisol Gomes, em 2007

Mesmo nos momentos mais chatos da adolescência, eu nunca me senti abandonado, não lembro de ter algum dia pensado que “ninguém gosta de mim”. Na periferia, nós testemunhamos pessoas abandonadas – mesmo que não formalmente –, pelos pais, e excluídas pela família estendida. Expulsos, mesmo que nas entrelinhas, da casa de tias e tios, justamente nos momentos em que mais precisam de apoio. Eu nunca passei por isso.

Aos 18 anos, fazendo estágio de dia e curso universitário à noite, sem grana, fiquei algum tempo sem poder almoçar, apenas jantando por R$ 1 no restaurante da universidade pública.

Na época, o orgulho não me deixava pedir ajuda – aquela mentalidade durona de “deixa que eu resolvo sozinho”, embora saibamos que muitas vezes não é possível resolver sozinho –, por isso não contei a situação para ninguém durante algum tempo. Fiquei visivelmente fraco, sem a performance mental usual – defensores da “meritocracia” dirão que “quem se esforça, consegue”, sugiro que tal defensor tente “conseguir” sem ter a quantidade mínima de nutrientes no cérebro. Minha mãe notou algo estranho, perguntou o que estava acontecendo e eu, relutante, contei que não almoçava. No dia seguinte, ela começou a fazer as marmitas que me sustentaram até eu trocar de emprego e conseguir pagar o almoço nos restaurantes do Plano Piloto. Eu tive a sorte de ter uma mãe sensível, atenta e capaz de solucionar problemas com o que estava à disposição naquele momento.

Eu nunca ouvi da minha mãe ou de qualquer outra pessoa da família que eu seria estúpido, fracassado ou que eu não poderia fazer algo. Há, na minha família materna e paterna, uma autoconfiança que pode até ser lida como arrogância. Entre a arrogância dos meus e a apatia que vi em muitos dos nossos vizinhos, eu fico com a nossa arrogância, todas as vezes.

Mesmo sem treinamento formal em pedagogia infantil, minha família criou um alicerce que impactou positivamente minha saúde mental para o resto da vida. E isso me levou de um barraco de pau com quatro cômodos e 13 pessoas no Gama, para um prêmio de melhor profissional de tecnologias de marketing do mundo, apresentado pela Time e CNN em Nova York, para um discurso sobre Economia Criativa na sede da ONU, para um apartamento em Manhattan com vista cinematográfica para o Empire State Building.

Muitas vezes, tudo que uma pessoa da periferia precisa sentir é acolhimento, pertencimento e autoconfiança, ter uma plataforma segura para se apoiar antes de alcançar aquilo que a sociedade, todos os dias, diz que não é para nós. É sim, por nós, para nós e para os nossos.

Empire State visto da janela do apartamento que moro em Manhattan, Nova York
Empire State visto da janela do apartamento que moro em Manhattan, Nova York

Ancestrais não queimaram canaviais em manhãs
Para sermos depósitos de lixo midiático e gordura trans
Pra sermos transformados em amebas biônicas
Que teclam suicídio na urna eletrônica

– As Vozes da Estatística, Carlos Eduardo Taddeo

“Um dia você vai poder comprar tudo que quiser”

E se eu me treinar a “querer” consumir menos?

Com o crescimento da minha empresa e carreira profissional, tive a oportunidade de comprar de carros populares a sedan de luxo, e acessei serviços e produtos mais sofisticados. Ao experimentar tudo isso, com o tempo e o amadurecimento, fui avaliando o retorno sobre o investimento de certos bens e aprendendo a desejar menos. Eu percebi que posso me dar ao luxo de não querer consumir tanto.

Morando em São Paulo por quase 10 anos, questionei: o quão mais feliz eu serei me movimentando lentamente em carro de luxo em vez de um carro popular? E se eu puder me locomover mais rapidamente em uma bicicleta e ser menos impactado pelo congestionamento?

Em 2011, as propagandas tentavam me convencer que “quem dirige um Ford Fusion, fez por merecer”. Mas quem ganha com isso? De quem é o interesse em me vender a ideia que “mereço” um sedan preto com bancos de couro? Será que, em 2013, eu precisava mesmo gastar quase metade do meu pró-labore anual em um carro, para mostrar que eu “mereci”?

Ao invés de desejar um Celta zero km igual o do colega da universidade, eu fui me treinando a não-querer carro algum. Eu conheço a minha história, não preciso que qualquer bem de consumo a valide como vitoriosa, afinal, me basta esse sorriso.

Marisol Gomes aponta o Empire State Building, icônico edifício em Nova York.
Marisol Gomes em Nova York, 2017

É necessário sempre acreditar que o sonho é possível
que o céu é o limite e você, truta, é imbatível.
Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase
e o sofrimento alimenta mais a sua coragem.
Que a sua família precisa de você
lado a lado se ganhar, pra te apoiar se perder.

– A vida é desafio, Racionais MC’s

Sobre o autor

Marco Gomes cresceu no Gama, periferia do DF, e atualmente trabalha como Estrategista de Projetos de Data Science, em Nova York, EUA. Reconhecido em 2014 pela revista Forbes como um dos 30 jovens com menos 30 anos mais promissores do país; Premiado como o Melhor Profissional de Tecnologias de Marketing do Mundo em 2013 pela World Technology Network; fundador da boo-box, apontada como uma das empresas de publicidade mais inovadoras do mundo pela revista FastCompany, vendida em 2015.