Racismo, Colorismo e Herança: minha pele clara não me salvou do sistema que oprime meus ancestrais
Belo Horizonte, 1964. Meu avô, minha avó e meu bisavô, pai da noiva. Fazendo uma conta reversa e chutando pelas datas, o pai e/ou a mãe deste senhor provavelmente foram escravizados, e este sistema racista prejudicou meu desenvolvimento no séc. 21.
O senhor da foto era garçom, a moça costureira e dona de casa, o rapaz estofador – quem faz e reforma sofás –, os quatro filhos do casal também tiveram profissões de baixa remuneração e pouco status social, só as duas filhas se formaram no ensino superior e seguiram carreira como professoras.
O Racismo Estrutural da sociedade brasileira durante todo o séc. 20 impôs barreiras sociais e econômicas, que impediram ou dificultaram desproporcionalmente meus antepassados de “subir na vida”. Salvo exceções, não era possível uma pessoa preta e pobre se tornar advogada, médica ou engenheira. Esta condenação à pobreza, por gerações desde a escravidão, fez com que meu bisavô não pudesse ter uma boa remuneração, nem mesmo uma formação. Já meus avôs tiveram uma educação ligeiramente melhor e foram alfabetizados, mas continuaram condenados à escassez e aos empregos mal pagos.
A geração dos meus pais e tios (1960s/1970s) herdou este racismo estrutural e histórico. Vários não terminaram sequer o ensino médio, pois precisaram trabalhar os 3 períodos. Como consequência, minha geração (1980s/1990s) teve que lidar com os mesmos problemas históricos, lembrando: dificuldades causadas por racismo.
Em Outliers, Malcolm Gladwell analisa as gerações de imigrantes judeus nos Estados Unidos após a 2ª Guerra Mundial, a tendência é tão clara que é quase algo determinístico: a primeira geração que chega ao país vende mercadorias, são comerciantes, e seus filhos são quase sempre advogados, engenheiros ou médicos.
Judeus sofrem preconceito, porém não sei se há no Brasil ou nos Estados Unidos um mecanismo social dificultando desproporcionalmente – e na prática impedindo –, que filhos de judeus estudem direito, engenharia ou medicina. Estes mecanismos existem até hoje para pessoas pretas, sejam por conta de barreiras econômicas ou práticas.
Eu nasci com a pele clara, porque meu pai é negro, mas minha mãe é branca, e esta característica me traz várias vantagens nesta sociedade racista que me colocam em posição de privilégio sobre nossos irmãos de pele retinta (mais escura). Porém, como vivemos em uma sociedade patriarcal e sexista, além de racista, eu cresci na pobreza não por consequência de alguma guerra, não houve nenhum desastre natural, nem foi por irresponsabilidade de meus antepassados. Foi racismo.
O Racismo Estrutural impede gerações de ascender socialmente.
Eu morei em um barraco de pau com 4 cômodos e 12 pessoas, muitas vezes com alimentação inadequada e escolas com pouco investimento e estrutura pedagógica fraca, não por incompetência ou pouco esforço da minha família – que trabalhava muitas horas, mais do que as pessoas que os contratavam –, porém, há um sistema em operação que, na prática, os impediu de ascender socialmente.
O racismo, que é um sistema, impediu meu bisavô de ter boa educação e remuneração; meus avôs também colheram o mesmo fruto maldito, que a sociedade enfiou goela abaixo dos filhos dos meus avôs, meus pais, tias e tios. Este sistema racista vai desde não ser aceito em bons empregos, por causa de aparência física, até exigências econômicas irreais na educação formal. Muitas vezes uma pessoa pobre, e quase sempre uma pessoa preta, não consegue estudar medicina simplesmente por não ter dinheiro para comer na faculdade. No Brasil uma pessoa pobre, e quase sempre uma pessoa preta, não pode se dar ao luxo de só estudar por até 10 anos para ser formar “doutor”.
Mesmo com os privilégios decorrentes da minha pele mais clara, eu nasci lidando com as consequências desse sistema. O racismo oprimiu o Sr. Antônio, meu bisavô, nascido em 1903; assim como a filha dele, minha avó Alda, nascida nos anos 1940, que não pode ascender socialmente; o filho dela, meu pai Wilian, nascido em 1965, mais um negro que nasceu na pobreza; e como o sistema racista continua em operação, a minha história não começou muito diferente em 1986.
O colorismo não me faz branco. Na sociedade racista, minha pele mais clara me dá privilégios sobre nossos irmãos de pele retinta (mais escura), só que eu ainda sou obrigado a lidar com o mar de pobreza, violência e descaso em que o sistema mantem nossa família há gerações. E a ascensão econômica individual não resolve esse problema, pois o Racismo Estrutural continua enjaulando em cadeias, empobrecendo e limitando as pessoas negras e indígenas no Brasil.
Acredito que somente com ações coletivas para reparar as injustiças do presente e do passado podemos mudar essa história, a nossa história. Por isso defendo as cotas nas universidades, a luta por maior representatividade na mídia e demais ações afirmativas, que proporcionem a todas as pessoas oportunidades equivalentes de prosperidade econômica e inclusão social. Apenas a aplicação destas políticas afirmativas pode, através de seus resultados, como um melhor equilíbrio entre brancos e negros nas classes sociais – ou, oxalá, a extinção da divisão em castas –, tornar elas próprias desnecessárias, pois a sociedade brasileira será finalmente diversa em todos os seus ambientes e camadas, dos juízes em tribunais superiores à presidência de grandes empresas.
Por enquanto, seguimos contando nossa história e honrando o imenso esforço de nossos antepassados, a quem, não faz muito tempo, o racismo negava até a alma.
Sobre o autor
Marco Gomes cresceu no Gama, periferia do DF, e atualmente trabalha como Estrategista de Projetos de Data Science, em Nova York, EUA. Reconhecido em 2014 pela revista Forbes como um dos 30 jovens com menos 30 anos mais promissores do país; Premiado como o Melhor Profissional de Tecnologias de Marketing do Mundo em 2013 pela World Technology Network; fundador da boo-box, apontada como uma das empresas de publicidade mais inovadoras do mundo pela revista FastCompany e destaque no Financial Times, vendida em 2015.
Marcos estamos juntos, toda minha família é branca e temos o mesmo padrão e história praticamente iguais!
Discordo quando falam de apropriação cultural, porém a parte economica que é a que mais importa ta muito desbalanceada, ja esteve mais, hoje com a internet deu uma diminuida no GAP, mas ainda eh pouco.
Samba, bossa nova, rock e maconha legalizada. Respondendo uma pergunta sobre apropriação cultural
http://marcogomes.com/blog/2019/samba-bossa-nova-rock-e-maconha-legalizada-respondendo-uma-pergunta-sobre-apropriacao-cultural/
“Meu avô, minha avó e meu bisavô, pai da noiva. Fazendo uma conta reversa e chutando pelas datas, o pai e/ou a mãe deste senhor provavelmente foram escravizados, e este sistema racista prejudicou meu desenvolvimento no séc. 21.”
Talvez você nem existiria… Seus pais nunca se conheceriam
Talvez seria um rei em madagascar…
Mas acho que o mais provável é a primeira opção.
bela historia texto muito bom parabéns Marco gomes pelo conteúdo
Excelente história marco, eu como negro não consegui passar desapercebido pela sociedade e pelo racismo estrutural e ainda fui criado nos anos 90 e hoje com 31 anos, senti bastante na pele o racismo eu era apelidado de macaco e coisas do gênero… Sempre quis fugir disso, não suportava ninguém me chamar daquilo mas as pessoas viam como “apelido” e não como injúria preconceituosa. Eu sempre me questionava pq diabos fui nascer negro , e acabei e negando qualquer coisa que pudesse me relacionar a negro (além da pele que não tinha como mudar) ,como por exemplo gostar de rap ou música do gênero, passei a adolescência escutando metal e procurando o pessoal mais dessa area(pessoas brancas) e eu dizia que odiava aqueles tipos de músicas q fossem do lado dos negros , tentando ser o negro de alma branca que inclusive me apelidaram disso e eu me sentia melhor assim, não sentia orgulho algum em pertencer a raça negra ,mas mais por trauma de não sofrer com o preconceito ,pelo menos os apelidos de macaco acabaram parando, mas depois q passou a adolescência e a fase rebelde e eu começar a estudar um pouco mais sobre as lutas e sobre as histórias do povo negro sofrido , acabei mudando totalmente e abrindo meus olhos e abraçando de vez a causa, mas vejo que povo negro aqui no Brasil não é Unido como nos EUA por exemplo, aqui temos negros q defendem esse racista que está na presidência, ou negros que negam sua raça como o presidente da fundação dos Palmares (Sérgio Camargo), ou até eu quando mais jovem, o Brasil precisa de mais apoio aos negros e contarmos melhor a luta que o nosso povo teve desde o início dos tempos e ainda tem até agora.
Desculpe o textao.
Marco, como você disse, você nasceu mais claro pois sua mãe é branca. E se você puxasse mais ainda pra ela, de modo que seus fenótipos negros fossem bem poucos (insuficientes para entrar em uma cota para negros por exemplo), você ainda usaria cotas de escola pública e de renda, certo? Pois bem, se uma pessoa negra, que carrega consigo antepassados que não conseguiram ascender socialmente graças ao racismo estrutural, fosse prestar vestibular, mas não houvesse cotas para negros, ela ainda usaria as cotas de renda, pois ela é pobre. Se é fato que a maioria das pessoas pobres no Brasil são negras, faria diferença? Não podemos usar apenas cotas de renda (que são mais simples de se verificar e de comprovar) e fazer com elas subclasses de acordo com as rendas?
Uma situação hipotética: uma pessoa branca (que é pobre porque ela tem antecedentes negros, digamos) ainda pode acessar a universidade por meio das cotas de renda. Então não podemos apenas focar e ampliar mais nesses tipos de cotas? Elas já não são amplas o suficiente para ajudar a todos que precisam?
Há um tempo eu pesquiso sobre o assunto, então se tiver livros, artigos ou até papers para recomendar, eu agradeceria.
Eu não tiha entendido o que era o tal do “racismo estrutural” até esse texto. Valew mermo mano!